quinta-feira, 19 de março de 2020

Ignomínias encarnadas (extraído de Miguel Sousa Tavares em A Bola)


Da crónica de Miguel Sousa Tavares em A Bola 
... há ainda uma quarta solução que, de tão imaginativa e escandalosa, só refiro porque aqui vi escrito que era uma hipótese em que os preclaros jusistas do Benfica já estariam a trabalhar no sentido de levarem aos órgãos decisores da Liga: que o campeonato fosse declarado terminado agora, mas as classificações que contariam seriam as que se verificavam, não agora, mas no final da primeira volta – quando o Benfica seguia à frente. Assim o Benfica seria declarado campeão e meteria já no bolso, sem mais angústias, o dinheirinho da Champions. Confesso que mesmo sabendo como a imaginação dos advogados pode ser fértil, não consigo enxergar que fundamento jurídico, que doutrina, jurisprudência ou caso julgado, poderá sustentar tão delirante pretensão – a não ser a razão que sempre tem para um advogado um cliente que pode pagar bons honorários. E não esquecendo também que estamos perante um clube que no passado já deu abundantes exemplos de não se deter muito nos meios para chegar aos fins pretendidos. Este é o clube que no passado já quis ser campeão e chagar à Champions à custa do FC Porto e graças à Comissão de Disciplina da Liga, através dos meios de prova que a justiça reduziria a cinzas no apito Dourado. Este é o clube que “comprou” um jogo decisivo em campo “neutro” ao Estoril Praia, dessa forma chegando ao título e remetendo o amigo Estoril para a segunda divisão. Este é o clube que chegou a outro título mais uma vez graças à Comissão Disciplinar da Liga e à suspensão de meses dada a Hulk, por força de um suposto pontapé a um steward, transformado em “agente desportivo” e que os justiceiros da Liga conseguiram descortinar por baixo das pernas de um molhe de gente no túnel da Luz. Este é o clube que quando o Sporting estava em desintegração interna, anunciou e tentou em vão levar de borla Bruno Fernandes – enquanto que Pinto da Costa fazia exactamente o contrário, dizendo a Sousa Cintra que podia estar tranquilo porque o FC Porto não se iria aproveitar da situação. Este é o clube, enfim, que todos os outros clubes portugueses conhecem por estes e outros inúmeros exemplos de fiar-play desportivo.
3 – O Expresso contou a história de um juiz do agora má fama Tribunal da Relação de Lisboa que era (e talvez ainda seja) convidado VIP habitual do Benfica. Colega de Rui Rangel no tribunal, o juiz foi, confessadamente, assistir a “sete ou oito jogos” dos encarnados na tribuna VIP do Estádio da Luz e a duas finais europeias dos encarnados, viajando no avião fretado pelo clube, dormindo no hotel pago pelo clube, com refeições e demais mordomias pagas pelo clube. Mas não vê nisso mal algum pois, segundo diz, no avião e com idêntica regalias, também seguiam outros juízes, políticos e jornalistas. Tudo à conta do Sport Lisboa e Benfica. Pois claro: faz sentido. Lembram-se do célebre documento de trabalho da Direcção do Benfica que, inadvertidamente, caíu no domínio público e no qual se delineava uma estratégia para dominar todos os sectores considerados essenciais: Arbitragem e Disciplina da Liga, mas também Comunicação Social, Banca, Mundo político e Justiça? Nada acontece por acaso. Porém, ainda há mais um detalhe: o desembargador em questão foi – a notícia não especificava se antes, depois ou antes e depois das viagens e dos camarotes – membro da Comissão Disciplinar da Liga. Ah, a coincidência! Que não é nada, disse ele: “sei muito bem separar os papeis”. Tanto que afirma até ter suspendido o Nuno Assis, então titular do Benfica, por seis meses (se não me engano, tratou-se de um caso de doping e não de disciplina). Na verdade, seria útil que, aproveitando este tempo morto do futebol, algum órgão de informação desportivo se dedicasse a vasculhar as decisões do juiz em causa no Conselho de Disciplina. Só para confirmar.
4 – De facto, os critérios do dito Conselho de Disciplina são um mistério. O FC Porto, por exemplo, levou recentemente um jogo de castigo à porta fechada (de que recorreu) porque UM adepto terá atirado UMA cadeira que acertou NUM polícia – que logo virou “agente desportivo” para o efeito. E o mesmo FC Porto foi condenado nuns milhares de euros por cânticos racistas de alguns adeptos num jogo contra o Aves, que ninguém escutou e ninguém relatou. Já no jogo V.de Guimarães-FC Porto, cujos cânticos racistas de uma bancada inteira contra um jogador portista (Marega) correram mundo e ainda estão por decidir pelo Conselho de Disciplina, o Vitória foi condenado em... 714 euros por outros insultos a Marega e Marchesin. Mas já os cânticos de adeptos vitorianos e o arremesso de cadeiras por parte dos adeptos portistas, que ninguém viu, custaram ao FC Porto 1.020 euros de multa. Digam-me lá: estão a brincar, não estão? Só podem. Qual será o castigo ao Benfica pelo arremesso de tochas dos seus adeptos contra os seus próprios jogadores, no final do jogo de Setúbal? Como? Ah, não consta do relatório! Entendi.
5 – António Salvador promete ficar calado sobre arbitragens – ele e todo o clube – durante toda a próxima época. Dou-lhe três meses. E se for vítima de uma arbitragem como a que assaltou o FC Porto no último jogo contra o Rio Ave, onde se pode ter decidido um título de campeão, não lhe dou nem três horas. O seu apelo para que todos sigam o seu exemplo de auto-invocado fair-play – que ainda não passa de uma promessa – é muito bom para calar consciências pesadas. Come e cala: o Benfica agradece. Aliás, as tiradas de Salvador sobre o fair-play no futebol – como a que fez a propósito do roubo de Rúben Amorim pelo Sporting, esquecendo-se que havia feito o mesmo anteriormente duas vezes – assentam todas na mesma insustentável leveza das coisas que se dizem só por dizer.

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