"Sapunarulk", elegia pela justiça e proporcionalidade perdidas
1- Positivamente, Hamlet tinha razão: há mesmo mais coisas, muito mais
coisas, no céu e na terra do que nós podemos sonhar na nossa filosofia. Quem
poderia ter antecipado nas suas locubrações filosóficas a possibilidade de
ver um dia o que, entre o espanto e a galhofa, a generosa prodigalidade da
Comissão Disciplinar (CD) da Liga Portuguesa de Futebol acaba de nos
oferecer? O espectáculo de um Julgador que vem anunciar a sentença,
proclamando que a profere e subscreve, embora consciente da sua injustiça e
desproporcionalidade. E, por causa disso, inconstitucional, certo como é que
o princípio de proporcionalidade configura, por imperativo constitucional,
um axioma irredutível de toda a lei, ergo de toda a sentença. Dito noutros
termos, a proporcionalidade configura uma dimensão ou categoria
transcendental de todo o direito, maxime do direito sancionatório, punitivo
e repressivo, que, de forma mais drástica, se projecta em compressão dos
direitos fundamentais.
Manifestamente, não é fácil descortinar o que mais admirar nesta CD: se a
monstruosidade - por injustiça e desproporcionalidade - da decisão; se o
quadro cénico com que foi servida. Com o seu criador a desdobrar-se num
arremedo de Jano. Com um rosto banhado de narcisismo e inebriado pela
felicidade de mais um momentoso momento de "justiça desportiva"; e, com
outro rosto, vestido de amofinada carpideira a riscar o ar com os gritos de
quem sente na alma os golpes da injustiça e desproporcionalidade.
Numa primeira observação, importa sublinhar que a injustiça e a
desproporcionalidade não decorrem da lei - concretamente do Regulamento
Disciplinar da Liga -, devendo levar-se exclusivamente à conta do seu
intérprete. Não estão na law in book, resultam da law in action, isto é, são
obra do arbítrio de quem lê, treslê e aplica a lei. Em boa verdade, a lei
não impõe, sequer sugere, que seguranças privados sejam "intervenientes no
jogo": nem faria sentido que o dissesse, já que eles não intervêm no jogo,
na diversidade de planos, funções e papéis em que este se desdobra. Os
seguranças privados não integram o universo daqueles que contribuem para a
densidade agónica própria da competição desportiva no contexto da sociedade
moderna, em relação à qual cumpre insupríveis e relevantes funções e
serviços: desde uma função de catarse e evasão, até uma função de
identidade, coesão e memória comuns. O "interveniente no jogo" mantém uma
relação dinâmica de interacção, física ou simbólica, de cumplicidade ou de
conflitualidade, com os "outros significantes" do jogo: companheiros de
equipa, adversários, árbitro, treinador, banco, etc. No mais generoso dos
limites, pode falar-se de interacção simbólica com o público e, sobretudo,
com as "claques".
O catálogo poderia alongar-se. Mas será forçoso parar. E parar a partir do
momento em que, à margem de toda a dúvida, deixa de subsistir aquela teia de
relação e interacção. Como sucede com os seguranças privados de um clube.
Que, no contexto do jogo, não interagem nem física nem simbolicamente com os
outros "intervenientes". Em definitivo, eles não pertencem - nem como
protagonistas, nem como actores secundários, nem sequer como figurantes
anónimos - ao drama do jogo, a que são inteiramente alheios. Pela mesma
razão que os seguranças do hospital não são "intervenientes no acto médico";
como os seguranças da CD (se os há) não são - sorte a deles! -
"intervenientes nos seus desvarios justiceiros".
Sendo claro que a lei não impõe a classificação dos seguranças como
"intervenientes no jogo", quid inde se, apesar de tudo, a mesma lei deixasse
subsistir alguma sombra de dúvida? Ela só poderia ser superada a favor da
interpretação mais restritiva, a única consonante com a justiça e a
proporcionalidade. Isto, em consonância com os desígnios de fundo da própria
Constituição em matéria de processos sancionatórios. Mesmo que para tanto
fosse indispensável lançar mão de mecanismos de interpretação e aplicação
restritivas da lei. Para lograr uma interpretação consonante com as
exigências de proporcionalidade.
Não é no quadro normativo, global e sistematicamente considerado, ao dispor
da CD, que radicam as razões da injustiça e da desproporcionalidade. Também
não podem buscar-se em limitações ou deficiências de cariz intelectual da
mesma CD, certo como é que ela não deixa de representar, anunciar e
denunciar a injustiça e a desproporcionalidade.
Só podem imputar-se a deficiências ou vícios da vontade. A CD decidiu assim
porque quis. Sabia que proferia uma decisão injusta e desproporcionada, e
foi isso que dolosamente fez.
Podia ao menos poupar a cena lastimável daquele espectáculo de derramar
lágrimas de proporcionalidade sobre a desproporcionalidade da sua criatura.
Depois de tripudiar sobre a lei e as virtualidades de justiça e de
proporcionalidade que a mesma lei alberga na sua letra, no seu espírito, no
seu sistema e no seu horizonte constitucional, restava o gesto digno de ser
autêntica e crescidinha. E querer o que verdadeiramente queria. Silenciando
os indecorosos clamores de carpideira menor.
Um silêncio que teria uma vantagem inestimável. Não acordaria o panglóssico
presidente da Liga do seu sonho de acreditar que deixa atrás de si um
futebol credibilizado. Um dia esse sonho há-de converter-se em pesadelo.
Será no dia em que as intempéries vindas dos tribunais desabarem sobre as
primícias acrisoladas da credibilização devidas à sua CD. Até lá, há direito
ao sonho. De mais a mais, quando o pesadelo chegar, já lá estarão outros a
enfrentá-lo.
Manuel da Costa Andrade,Professor da Fac. de Direito de Coimbra
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